Crítica Social em CORRA (2017), de JORDAN PEELE - por Márisson Fraga [ALERTA DE SPOILER]

O filme "Corra" (Get Out), de Jordan Peele, lançado em 2017, oferece uma crítica sociopolítica contundente sobre o racismo estrutural e as relações raciais contemporâneas nos Estados Unidos. A trama, que mistura terror e sátira social, gira em torno de Chris, um jovem negro que visita a família de sua namorada branca, e descobre um plano macabro de exploração e dominação racial. Através de simbolismos e metáforas, Peele aborda questões como a apropriação cultural, o racismo velado e a objetificação de corpos negros. A análise sociopolítica de Corra foca em diversos temas importantes:


1. Racismo Velado e Liberal

Um dos principais aspectos abordados em Corra é o racismo liberal e dissimulado presente na sociedade moderna. A família Armitage, que inicialmente se apresenta como progressista e acolhedora, demonstra, na verdade, uma forma insidiosa de racismo. Isso reflete a ideia de que o racismo contemporâneo não é sempre explicitamente agressivo ou violento, mas pode ser disfarçado por gestos paternalistas, apropriação cultural ou discursos bem-intencionados que perpetuam a desigualdade racial.

A famosa fala do pai de Rose, Dean, "Eu teria votado no Obama uma terceira vez", é emblemática do racismo disfarçado sob a retórica liberal. Aqui, Dean usa sua suposta admiração por Obama para afirmar sua "boa vontade" em relação aos negros, enquanto, na verdade, participa de um esquema de exploração extrema.  

Essa camada do filme critica a forma como o racismo está arraigado mesmo em ambientes que se autoproclamam progressistas e sem preconceito, mostrando que não se trata apenas de ódio explícito, mas de uma forma de dominação e controle sutis, que se mantêm apesar das aparentes mudanças sociais.

2. Objetificação e Apropriação dos Corpos Negros

Em Corra, os corpos negros são vistos como "commodities", algo valioso e desejado por sua força, vitalidade ou atributos físicos. O "leilão" silencioso de Chris, em que os brancos disputam quem ficará com seu corpo, simboliza a objetificação e mercantilização dos negros. Esse elemento faz uma conexão direta com o legado da escravidão, em que os corpos negros eram literalmente comprados, vendidos e utilizados para benefício dos brancos.

A apropriação física dos corpos através do transplante de cérebros – a transferência de consciência dos brancos para os corpos dos negros – simboliza a apropriação cultural, onde aspectos da cultura negra (força física, juventude, talentos) são cooptados, enquanto a identidade e a voz das pessoas negras são silenciadas. Nesse sentido, o filme critica a ideia de que brancos podem "usufruir" da negritude sem vivenciar a opressão e as experiências históricas associadas a ela.

3. Racismo Estrutural e Cientificismo

A metodologia usada pelos Armitage – o sequestro de corpos negros para realizar transplantes de cérebros – ecoa práticas pseudocientíficas historicamente usadas para justificar a superioridade branca e o controle sobre as pessoas negras. Isso lembra as experimentações médicas, como as que foram realizadas no passado sobre corpos negros, especialmente em tempos de escravidão e segregação, onde o corpo negro era tratado como um objeto de estudo ou uma máquina, sem humanidade.

O filme aborda a maneira como o racismo, ao longo da história, se legitimou sob o pretexto da ciência. Na história dos Armitage, o uso de ciência avançada para criar "super humanos" com corpos negros e cérebros brancos é uma crítica direta a como, historicamente, as teorias científicas (como a eugenia) foram usadas para sustentar as hierarquias raciais.

4. Exploração da Economia Racial

"Corra" explora também o conceito de economia racial, em que a exploração dos negros não é apenas física, mas também simbólica e econômica. No filme, os negros são literalmente transformados em recipientes úteis para os brancos. Eles são desejados por suas qualidades físicas e biológicas, o que remete à antiga estrutura econômica do sistema de escravidão, onde o corpo negro era visto como uma ferramenta para gerar lucro e vantagens para os brancos.

A família Armitage enriquece e mantém seu status social através da exploração dos corpos negros, o que espelha como as elites brancas nos Estados Unidos construíram e mantêm seu poder e riqueza através da subjugação de populações negras. A trama aborda o conceito de capital racial, em que a cultura, as habilidades e o trabalho das pessoas negras são apropriados, mas sem dar espaço para que essas mesmas pessoas possam ter controle sobre suas vidas e identidades.

5. O Lugar do Negro na Sociedade Branca

A narrativa de Chris sendo "caçado" pela elite branca para ser transformado em uma versão passiva de si mesmo critica como as pessoas negras são pressionadas a se conformar aos padrões sociais impostos pelos brancos. A hipnose de Missy, que coloca Chris no "Sunken Place" (um lugar onde ele está consciente, mas impotente), é uma metáfora para a experiência de muitas pessoas negras, que são marginalizadas ou silenciadas em uma sociedade que valoriza a negritude apenas em termos de utilidade e exotismo.

O "Sunken Place" é uma representação do isolamento e da impotência racial. A imagem de Chris gritando por ajuda, mas não conseguindo se libertar, reflete a condição de muitas pessoas negras que, mesmo plenamente conscientes da opressão que enfrentam, se encontram impotentes diante das forças estruturais que as silenciam e controlam.


6. A Revolta Final e a Reversão de Poder

O clímax do filme, onde Chris finalmente se liberta e derrota a família Armitage, pode ser visto como uma metáfora para a resistência negra contra a opressão branca. Ele assume o controle da situação e se liberta, o que subverte a ideia de que os negros devem ser sempre as vítimas passivas. A luta de Chris para sobreviver e escapar é um símbolo de resistência e de busca por autonomia frente a uma sociedade que historicamente tentou controlá-lo e subjugá-lo.

Conclusão

"Corra" é uma crítica social profunda que aborda questões de racismo estrutural, apropriação cultural, e a hipocrisia do racismo liberal disfarçado. Jordan Peele usa o gênero de terror como uma forma de explorar as ansiedades raciais contemporâneas, mostrando que o racismo, mesmo quando disfarçado de boas intenções, é uma força destrutiva que continua a dominar a vida de muitas pessoas negras. O filme desafia os espectadores a refletirem sobre as formas de opressão que persistem nas relações raciais modernas, especialmente na forma como a cultura negra é apropriada e os corpos negros são explorados.


Comentários