A Missa da Meia-Noite (2021): fé, culpa e monstros à beira-mar — o horror existencial de Mike Flanagan
Mike Flanagan já tinha cravado seu nome na história do horror contemporâneo com obras como Jogo Perigoso (2017), A Maldição da Residência Hill (2018) e Doutor Sono (2019). Mas com A Missa da Meia-Noite (2021), ele deixou claro que não está apenas interessado em assustar — está interessado em filosofar o medo.
A Missa da Meia-Noite é um daqueles raros exemplos em que o terror não é só um recurso estético: é uma ferramenta de análise existencial. É também sua obra mais pessoal, segundo o próprio Flanagan, que canalizou aqui sua história com o alcoolismo, a culpa e sua criação católica.
Enredo: monstros, milagres e uma ilha à deriva
A história se passa na isolada Crockett Island, uma comunidade costeira em declínio, assolada pela miséria, pela falta de perspectivas e, principalmente, pela desesperança. Tudo muda com a chegada do misterioso Padre Paul Hill, que substitui o antigo Monsenhor Pruitt — supostamente afastado por questões de saúde. A comunidade começa a presenciar milagres. Paralíticos voltam a andar. Doentes são curados. Mas também começam a ocorrer... coisas estranhas.
Flanagan dosa com maestria os elementos do slow burn: ele constrói o suspense com calma, nos apresentando personagens densos, dramas humanos reais e debates teológicos desconcertantes. E então, aos poucos, o sobrenatural se infiltra.
Sem spoilers, basta dizer: o que parece milagre pode ter vindo do próprio inferno. Ou melhor — da interpretação distorcida das escrituras.
Fé e fanatismo: a religião como veneno e salvação
Aqui entra o Flanagan bancando o antropólogo: ao invés de demonizar a fé, ele a examina com um bisturi afiado. Ele entende o poder das narrativas religiosas como estruturas simbólicas que organizam o caos da vida — mas também mostra como essas mesmas estruturas podem ser usadas para justificar horrores inenarráveis. Diga-se de passagem, um debate que atravessa a história da humanidade.
A personagem Beverly Keane, a beata autoritária da ilha, é o retrato perfeito do fanatismo religioso: sua fé inabalável a torna perigosa. Ela interpreta a Bíblia à sua maneira, ignorando o amor e a compaixão, e transformando os textos sagrados em justificativa para massacre. A crítica social aqui é clara: o verdadeiro terror não vem de vampiros, mas da cegueira moral travestida de devoção.
Vampirismo como metáfora existencial
Sim, A Missa da Meia-Noite tem elementos clássicos do horror vampírico. Mas não se engane: o monstro aqui não é um Drácula de capa e dentes pontiagudos — é uma criatura ambígua, silenciosa, ancestral, e incrivelmente simbólica. Ele representa a tentação de vencer a finitude da vida, o delírio da imortalidade. Mas a que custo?
Flanagan apresenta o vampirismo como uma metáfora para vício, negação do luto e recusa em aceitar a finitude da existência. Crockett Island não quer morrer — e isso a condena.
Monólogos: entre a beleza e o excesso
Os longos monólogos são marca registrada de Flanagan, e aqui ele se entrega sem pudor. Algumas pessoas reclamam, chamando a série de “falastrona”. Mas esses diálogos profundos — sobre vida após a morte, redenção, perdão, culpa — são parte fundamental da experiência.
A conversa entre Riley Flynn e Erin Greene sobre o que acontece depois da morte é, possivelmente, um dos momentos mais belos já feitos no terror moderno. Ele fala da dissolução do ego. Ela fala da reunião com o divino. É ciência e espiritualidade tentando se abraçar no meio da escuridão.
Referências culturais: Flanagan é fã como a gente
Citando sutilmente Nosferatu, Salem’s Lot, O Exorcista e até A Hora do Pesadelo, Flanagan constrói uma tapeçaria pop de referências. Mas o que mais impressiona é como ele usa o horror como um espelho para a condição humana — algo que autores como Shirley Jackson, Stephen King e Poe também faziam.
Flanagan está mais interessado nas feridas invisíveis: o alcoolismo, o arrependimento, a culpa, a fé como bengala para a dor. E isso o diferencia.
Conclusão: uma missa para os vivos e os mortos
A Missa da Meia-Noite é mais que uma série de terror. É um estudo sobre a alma humana. Um convite à reflexão sobre o que é ser bom, o que é ter fé, o que é aceitar a morte com dignidade. Flanagan nos mostra que às vezes, os piores monstros não são os que se escondem nas sombras — são os que se ajoelham no altar, acreditando que estão fazendo o bem.
É uma série que exige paciência, atenção e, sobretudo, entrega. Porque, no fim das contas, todos nós carregamos nossas pequenas ilhas dentro de nós — cheias de fé, de culpa, de esperança… e de fantasmas.
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