Lançada em 2020 pela Netflix e dirigida por Mike Flanagan, A Maldição da Residência Bly surge como a sucessora espiritual de A Maldição da Residência Hill (2018). Embora compartilhe da mesma estética gótica, da atmosfera de horror psicológico e do olhar refinado sobre os traumas humanos, a segunda temporada não adapta diretamente Shirley Jackson, mas sim a obra de Henry James, sobretudo o conto clássico The Turn of the Screw (A Volta do Parafuso, 1898).
Mas Flanagan, em sua genialidade, vai além: amplia o enredo, ressignifica personagens e costura uma narrativa que ultrapassa os limites do terror sobrenatural, transformando a série em uma reflexão profunda sobre luto, amor, memória e as cicatrizes emocionais que nos assombram.
O contexto sociocultural de Bly Manor
O ano de 2020 foi marcado pela pandemia de COVID-19, isolamento social e um mundo que parecia suspenso no tempo. Quando Bly chegou ao catálogo da Netflix, a audiência global estava em meio a perdas, confinamento e um confronto coletivo com a finitude da vida. Nesse cenário, a série se destacou justamente por propor um terror que não se apoia apenas em sustos, mas em questões existenciais: a memória, o esquecimento e o medo de desaparecer.
Enquanto a primeira temporada (Hill House) refletia sobre traumas familiares e a herança emocional transmitida entre gerações, Bly Manor mergulha na psicologia das relações amorosas, explorando as diferentes formas de vínculo: paixão, obsessão, devoção e sacrifício.
A estética do gótico romântico
Inspirada no gótico literário do século XIX, A Maldição da Residência Bly evoca mansões isoladas, atmosferas sombrias e fantasmas que simbolizam mais do que assombrações externas. No gótico, a casa costuma ser um reflexo do inconsciente - e Bly não é exceção. O casarão torna-se um palco da memória, onde cada corredor guarda uma lembrança, e cada fantasma representa uma emoção reprimida ou um vínculo mal resolvido.
Flanagan adota uma narrativa fragmentada, com idas e vindas temporais, reforçando a ideia de que lembrar é também um ato de reconstrução. O famoso “fantasma sem rosto” da Lady of the Lake é, antes de tudo, um comentário sobre o esquecimento e a diluição da identidade no tempo.
Psicologia e Antropologia do Amor Assombrado
Sob o olhar psicológico, Bly Manor traz personagens que se equilibram entre o desejo de amar e o medo da perda. Dani (Victoria Pedretti), ao lidar com sua culpa e sua sexualidade, encarna o dilema da identidade em uma sociedade que historicamente marginalizou relacionamentos não heteronormativos. A relação entre Dani e Jamie (Amelia Eve) inscreve-se como uma das mais belas histórias de amor trágico já contadas no gênero, ecoando a tradição dos romances góticos e, ao mesmo tempo, dialogando com os debates sociais contemporâneos sobre diversidade e representatividade.
Do ponto de vista antropológico, Bly também fala sobre como diferentes culturas encaram a morte e a memória. O ato de lembrar (ou esquecer) os mortos é um fenômeno universal - de rituais indígenas a práticas religiosas ocidentais - e a série transforma isso em matéria narrativa. O fantasma em Bly não é apenas o morto que retorna, mas a memória que insiste em permanecer.
A série como metáfora pós-moderna
Na era da hiperconectividade e da efemeridade, em que a vida parece cada vez mais líquida (como descreve Zygmunt Bauman), Bly Manor denuncia a fragilidade das relações e o medo de dissolução da identidade. Ser esquecido, perder o rosto, desaparecer na memória coletiva - eis o verdadeiro horror da pós-modernidade.
Assim, Mike Flanagan resgata um conto vitoriano do século XIX e o reinterpreta sob a lente de questões contemporâneas: o amor em tempos de instabilidade, a memória em tempos de esquecimento e o luto em tempos de incerteza global.
Conclusão
Mais do que uma série de terror, A Maldição da Residência Bly é um poema gótico sobre o tempo e a memória. Seus fantasmas não dão apenas sustos - eles choram, amam, sofrem e desaparecem. E, talvez por isso, causem tanto impacto.
Se Hill House foi sobre a herança familiar que carregamos, Bly é sobre as marcas que deixamos nos outros. É sobre como o amor, ainda que condenado ao esquecimento, pode resistir - como uma vela acesa em meio à escuridão da mansão.
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