Lançado em 29 de setembro de 2017 na Netflix, Jogo Perigoso (Gerald’s Game), dirigido por Mike Flanagan - o mesmo criador por trás das impactantes séries A Maldição da Residência Hill e Missa da Meia-Noite - é uma obra que transcende os limites tradicionais do terror físico para explorar o abismo psicológico da protagonista, Jessie Burlingame. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Stephen King, publicado originalmente em 1992.
Embora o enredo possa parecer simples à primeira vista - uma mulher acorrentada à cama em uma casa isolada após a morte súbita do marido durante um jogo erótico -, a densidade simbólica e social por trás dessa situação é profunda, claustrofóbica e perturbadora.
Contexto sociocultural da época do lançamento
O ano de 2017 foi marcado por intensas discussões sobre violência doméstica, abuso sexual, e empoderamento feminino. Foi também o ano em que eclodiu o movimento #MeToo, desencadeando uma onda de denúncias contra abusadores em posições de poder, especialmente em Hollywood. Jogo Perigoso foi lançado nesse cenário inflamado, e por isso encontrou um terreno fértil para ressoar com o público de forma visceral.
Jessie, interpretada magistralmente por Carla Gugino, não é apenas uma vítima de um acidente bizarro. Ela representa milhares de mulheres que passaram a vida acorrentadas, não literalmente, mas simbolicamente - por traumas infantis, relacionamentos abusivos e silêncios impostos.
Uma leitura psicológica: trauma, repressão e libertação
Flanagan entrega um estudo de caso sobre memórias reprimidas e psicodinâmica do trauma. Presa à cama, sem escapatória, Jessie é obrigada a encarar seus fantasmas interiores - especialmente o abuso sexual sofrido na infância, cometido pelo próprio pai, e o pacto de silêncio que ela foi forçada a manter.
A narrativa trabalha com o conceito freudiano de "retorno do recalcado": o trauma que foi reprimido volta com força total no momento de vulnerabilidade extrema. O espaço fechado, físico e mental, transforma-se em um labirinto de dissociações, vozes internas e alucinações, numa atmosfera que remete ao terror psicológico de Repulsa ao Sexo (1965), de Polanski, e ao isolamento desesperador de O Iluminado (1980), também de King.
O papel do “Homem da Meia-Noite”: morte, decadência e delírio
Um dos personagens mais impactantes do filme é o “Homem da Meia-Noite”, figura macabra que Jessie vê nas sombras - símbolo ao mesmo tempo do medo da morte e da deformação da realidade causada pelo trauma. A revelação final de que ele é um necrófilo real, chamado Raymond Andrew Joubert, mistura a fronteira entre o real e o imaginado, e lembra que o verdadeiro horror muitas vezes habita o mundo cotidiano.
A aparição do Homem da Meia-Noite funciona quase como um “duplo sinistro” (unheimlich) - conceito desenvolvido por Freud para descrever aquilo que é familiar, mas torna-se inquietante. Ele também encarna o medo antropológico da morte e da decomposição - temas universais que, em sociedades ocidentais contemporâneas, costumam ser ocultados ou fetichizados.
Leitura sociológica e feminista: as algemas invisíveis
As algemas que prendem Jessie à cama não são apenas metáforas fáceis. Elas representam séculos de condicionamento social do feminino, onde mulheres foram ensinadas a suportar, silenciar, sorrir e ceder - mesmo à violência. Em Jogo Perigoso, Mike Flanagan transforma o cativeiro físico em uma jornada de resgate subjetivo e luta contra um sistema que tenta definir as mulheres por seus corpos ou por sua obediência.
A libertação de Jessie no final não se dá apenas pelo corte das algemas com um caco de vidro - cena brutal que simboliza o rasgar da pele social -, mas também pela sua reconstrução narrativa, ao escrever uma carta a si mesma e confrontar o agressor que um dia a aterrorizou.
Antropologia do medo: quando o terror é íntimo
Enquanto muitos filmes de horror se apoiam em monstros externos, casas assombradas ou assassinos sobrenaturais, Jogo Perigoso mergulha em um tipo de horror mais primitivo: o medo da paralisia, da solidão, da fome, da sede, do abandono - e sobretudo, o medo de lembrar.
Na perspectiva antropológica, o filme aciona o “corpo em perigo” como um dos arquétipos do horror mais antigos da humanidade. A casa de veraneio, que deveria ser um espaço de descanso, se transforma em um território de julgamento e provação, quase como uma caverna ritualística onde a protagonista precisa morrer simbolicamente para renascer.
Conclusão: o terror como via de autoconhecimento
Jogo Perigoso é, acima de tudo, uma narrativa de enfrentamento. Não há vilões sobrenaturais ou maldições arcanas. O verdadeiro vilão é o passado silenciado, a dor abafada, e a cultura do medo que ainda sufoca mulheres todos os dias.
Mike Flanagan, com respeito à obra de Stephen King e com seu próprio talento para o horror emocional, entrega uma adaptação que é ao mesmo tempo minimalista e intensa, simbólica e direta. Um verdadeiro tour de force do terror psicológico contemporâneo, que merece ser visto, revisto e debatido com profundidade.
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