Lançada em 2019 pela Netflix, Marianne, dirigida por Samuel Bodin, rapidamente conquistou seu espaço entre as séries de terror mais perturbadoras da década. O enredo acompanha Emma Larsimon, uma escritora de best-sellers de terror que retorna à sua cidade natal e descobre que sua obra fictícia - especialmente a bruxa Marianne - pode ter mais realidade do que ela imaginava. A atmosfera sombria, carregada de elementos folclóricos e traumas psicológicos, faz da produção uma verdadeira aula de como o terror europeu dialoga com tradições culturais e medos ancestrais.
Para compreendermos melhor essa série, é preciso olhar para o contexto histórico, as crenças populares e as práticas simbólicas de determinadas épocas.
Europa do século XVII: medo, peste e caça às bruxas
O século XVII na Europa foi marcado por crises religiosas, perseguições e um intenso clima de medo coletivo. Guerras religiosas entre católicos e protestantes, surtos de peste e fome moldaram um cenário em que o sobrenatural era entendido como causa de infortúnios sociais.
As bruxas eram acusadas de provocar doenças, infertilidade, tempestades e desgraças. A França foi palco de julgamentos célebres, como o das bruxas de Loudun (1634), onde o pânico moral se misturou ao controle social da Igreja e da monarquia absolutista.
Nesse contexto, rituais apotropaicos - isto é, práticas simbólicas para afastar o mal - eram comuns. E é justamente isso que a cena de Marianne recupera.
Rituais contra bruxas e vampiros
A tradição de queimar papéis, objetos ou símbolos sobre túmulos está ligada à ideia de “quebrar o vínculo” da bruxa com o mundo dos vivos. Muitas vezes, escrevia-se o nome da entidade, uma prece ou até insultos destinados ao espírito, acreditando que o fogo purificava e selava o mal.
Na Europa Central e Oriental, práticas semelhantes eram aplicadas contra vampiros:
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Queimar corpos suspeitos de vampirismo;
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Enterrar com estacas no coração ou pedras na boca, para impedir a volta;
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Rituais de fogo e cinzas, que funcionavam como barreiras espirituais.
Na França especificamente, havia registros de ritos funerários diferenciados para indivíduos acusados de bruxaria. Muitas vezes, eram enterrados fora dos cemitérios cristãos, e objetos eram queimados sobre seus túmulos como forma de “selar” a alma e impedir sua volta. O uso do fogo tinha um duplo simbolismo: a purificação espiritual e o castigo eterno.
Marianne e a memória cultural da bruxa
O detalhe histórico inserido na série não é gratuito. Ao mostrar o jovem queimando um papel sobre o túmulo de Marianne em 1617, os criadores reforçam como a figura da bruxa é mais do que uma entidade maligna: é um trauma coletivo.
A França do início do século XVII era atravessada por:
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A consolidação da autoridade real (o absolutismo de Luís XIII e, depois, de Luís XIV), que se beneficiava da caça às bruxas como instrumento de disciplina social;
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A persistência de crenças populares, que nem sempre se alinhavam à ortodoxia religiosa, mas sobreviviam em aldeias e tradições orais;
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O medo da morte e da peste, que gerava explicações sobrenaturais para tragédias inexplicáveis.
Assim, Marianne não é apenas uma entidade ficcional, mas a encarnação desses medos que atravessaram séculos e ainda sobrevivem no imaginário contemporâneo.
Do folclore ao terror contemporâneo
O grande mérito da série está em atualizar o folclore europeu para o terror psicológico moderno. Samuel Bodin e a equipe de roteiristas não apenas exploram os clichês do gênero, mas também os ressignificam: o mal não é apenas sobrenatural, mas também psicológico, alimentado pela culpa, pela repressão e pelos traumas de infância.
Ao dialogar com o passado — os rituais contra bruxas, a tradição do exorcismo pelo fogo e a atmosfera persecutória do século XVII —, Marianne nos lembra que o terror mais profundo é aquele que une História, folclore e psique humana.
Conclusão:
Marianne não é apenas uma série de bruxas, mas uma reflexão sobre como culturas inteiras lidaram (e ainda lidam) com o mal. A cena de 1617 funciona como uma ponte entre a superstição ancestral e a narrativa contemporânea, provando que o terror mais assustador é aquele que carrega as marcas do real.
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