Através das Sombras (2015): o fantasma da culpa, o peso da moral e o terror à brasileira

Lançado em 2015, Através das Sombras, dirigido por Walter Lima Jr., é um filme brasileiro de terror psicológico que flerta com o suspense gótico e a estética do sobrenatural clássico. Estrelado por Virgínia Cavendish, o longa adapta o conto “A Volta do Parafuso”, de Henry James, transpondo a narrativa para um Brasil de época, entre casarões coloniais, repressão moral e fantasmas que talvez sejam mais psíquicos do que espectrais.

Mais do que uma simples história de assombração, o filme mergulha em temas densos como a repressão feminina, o peso da religião, os limites da sanidade e a presença simbólica da morte — tudo isso envolto num clima melancólico que ecoa tanto os traumas pessoais da protagonista quanto os ecos sociais de uma época marcada por conservadorismo e ocultamentos. 

E, sim... eu tive que assistir a este filme três vezes para conseguir perceber os simbolismos por trás do enredo.

Contexto sócio-histórico: ecos do século XIX em pleno século XXI

Apesar de ser um filme contemporâneo, Através das Sombras se passa em um Brasil rural do século XIX, refletindo um tempo onde a estrutura social ainda era marcada pelo patriarcado autoritário, o controle religioso da vida íntima e o isolamento emocional de figuras femininas.

Ao ambientar a história nesse cenário, Walter Lima Jr. nos convida a revisitar um momento onde a loucura, a histeria e a sensibilidade feminina eram frequentemente marginalizadas ou patologizadas. A protagonista, uma professora introvertida e marcada por traumas do passado, encarna esse arquétipo da mulher à beira do colapso — não por fraqueza, mas por viver num mundo que a nega, silencia e reprime.

No Brasil de 2015 — ano de intensos conflitos políticos, polarizações morais e efervescência religiosa — o filme ganha uma leitura ainda mais provocativa: ele espelha uma sociedade que, embora moderna, ainda carrega heranças coloniais em sua forma de lidar com o feminino, a culpa e o silêncio.

O enredo: entre vivos, mortos e delírios

No filme, Virgínia Cavendish interpreta Laura, uma professora contratada para cuidar de duas crianças órfãs em uma antiga casa de campo. À medida que convive com os pequenos — aparentemente ingênuos, mas estranhamente maduros —, ela começa a perceber uma atmosfera inquietante: sons inexplicáveis, aparições nos espelhos, presenças não identificadas.

Mas o que realmente perturba Laura não são apenas os possíveis fantasmas que habitam a casa, mas os fantasmas internos — traumas, desejos reprimidos, suspeitas inconfessáveis.

Como em A Volta do Parafuso, tudo no filme gira em torno da dúvida: será que os fantasmas são reais? Ou tudo é fruto de uma mente afetada por pressões morais, solidão e memórias não elaboradas?

A estética: silêncio, sombra e sugestão

Walter Lima Jr., veterano do cinema nacional, opta por uma abordagem sutil, quase teatral. Os planos longos, a fotografia opaca, o uso contido da trilha sonora e a predominância dos espaços vazios colaboram para criar uma atmosfera claustrofóbica e suspensa no tempo.

Aqui, o horror não vem de sustos fáceis. Ele emerge lentamente, como um nevoeiro que contamina tudo — e que nunca revela completamente sua origem. Isso se alinha com a tradição do “horror atmosférico” e dialoga diretamente com cineastas como Robert Wise (Desafio do Além, 1963) e Jack Clayton (Os Inocentes, 1961), este último também baseado no mesmo conto.

Interpretações psicológicas e antropológicas

Sob uma lente psicológica, Através das Sombras é uma jornada pela fragilidade da mente diante do excesso de repressão e isolamento. A personagem de Cavendish parece sofrer de um colapso dissociativo progressivo, onde a realidade começa a se desfazer diante do peso do não dito — um tema recorrente na tradição psicanalítica.

Do ponto de vista antropológico e sociológico, o filme denuncia uma estrutura social onde o silêncio é imposto como forma de controle, especialmente sobre mulheres que ocupam papéis de cuidado, mas são privadas de voz. A casa isolada, símbolo da domesticidade, torna-se prisão — física e psíquica.

As crianças, ao mesmo tempo vítimas e agentes de mistério, representam uma inocência ambígua — aquela que, como na tradição gótica, pode tanto iluminar quanto perverter.

Uma atriz em destaque

Virgínia Cavendish entrega uma performance contida e poderosa, sustentando a narrativa com nuances de vulnerabilidade, tensão e crescente paranoia. Sua atuação é o ponto de equilíbrio do filme, conduzindo o espectador por uma espiral de incertezas e pressentimentos sombrios.

Recepção e legado

O filme não teve ampla repercussão no circuito comercial, o que é uma pena. Talvez sua natureza mais introspectiva e seu ritmo lento o tenham afastado do grande público. Mas para os amantes do horror psicológico, Através das Sombras é uma obra rara no cinema brasileiro — um exemplar de terror gótico que respeita a inteligência do espectador e trabalha com sugestão, subtexto e ambiguidade.

É, ao mesmo tempo, uma adaptação literária sofisticada e uma meditação fúnebre sobre culpa, sexualidade reprimida e o poder destrutivo do silêncio.

Conclusão: sombras que falam mais que gritos

Através das Sombras não é um filme para quem busca sustos rápidos ou explicações óbvias. É uma experiência lenta, envolvente e desconcertante. Um terror de camadas, onde o que mais assusta não são os fantasmas, mas as ausências, os silêncios e os horrores cotidianos da mente e da sociedade.

No fim, como em todo bom horror gótico, ficamos com a dúvida:
Os fantasmas existem... ou somos nós que os criamos?

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