A Profecia (1976): O horror do Anticristo e os medos de uma era pós-religiosa

“É tudo por você, Damien!” — grita a babá na festa de aniversário da criança mais enigmática do cinema de horror. 

Lançado em 1976, A Profecia (The Omen) não foi apenas mais um filme sobre possessão ou entidades demoníacas. Ele capturou, com profundidade e estilo, os medos metafísicos de uma era em crise de fé, dando rosto e nome à angústia ocidental do século XX: Damien, o Anticristo.

Dirigido por Richard Donner (mais tarde responsável por Superman e Os Goonies) e roteirizado por David Seltzer, o filme se consagrou como um clássico do horror sobrenatural, misturando elementos bíblicos, teorias apocalípticas, medos parentais e símbolos ancestrais.

O contexto sócio-histórico dos anos 70: um mundo à beira da paranoia

A Profecia chegou aos cinemas em uma década marcada por desencanto e incerteza espiritual. O otimismo pós-Segunda Guerra Mundial estava se dissolvendo sob o peso da Guerra do Vietnã, do escândalo de Watergate e do crescimento das seitas apocalípticas. A fé nas instituições estava em declínio — inclusive a fé religiosa.

Nos anos 70, a cultura pop começava a flertar abertamente com o ocultismo: a morte de Sharon Tate pela seita de Charles Manson, a popularidade de filmes como O Exorcista (1973) e O Bebê de Rosemary (1968), e o surgimento de livros que tratavam do Anticristo como uma figura iminente — tudo isso alimentava um medo difuso do “fim dos tempos”.

A Profecia surge nesse exato ponto: um filme que não apenas brinca com a possibilidade de o Anticristo estar entre nós, mas o coloca no berço de uma família poderosa, cercada por amor e privilégios.

Damien e a inversão da inocência: o medo da paternidade e do desconhecido

O horror de A Profecia não está nas cenas de violência explícita, mas na ideia de que o mal absoluto pode habitar o corpo de uma criança aparentemente doce. Essa é uma das grandes sacadas do filme: subverter a imagem da infância como pureza e inocência.

Damien, adotado por um casal influente sem saberem de sua origem demoníaca, cresce cercado de carinho e proteção. Mas à medida que eventos sinistros acontecem ao seu redor — mortes inexplicáveis, animais em fúria, pessoas que se sacrificam (literalmente) por ele —, o espectador começa a perceber que algo está fundamentalmente errado.

Do ponto de vista psicológico, Damien representa o medo do pai moderno diante da possibilidade de não conhecer verdadeiramente seu filho — ou pior: de que a própria figura paternal, ao tentar proteger, se torne impotente diante de uma força que o ultrapassa.

O cão como símbolo: guardião do inferno

Uma das imagens mais icônicas de A Profecia é a do cão preto, um rottweiler, que surge silenciosamente no jardim da casa dos Thorn, aproximando-se de Damien. O animal se torna seu protetor sombrio.

Na simbologia ancestral — da mitologia egípcia ao folclore europeu — o cão preto é frequentemente associado ao guardião dos mortos, mensageiro do além, ou guia do submundo. Em muitas culturas, ele acompanha figuras sombrias ou serve como sinal de mau presságio.

Em A Profecia, o cão não é um agressor, mas um servo fiel do Anticristo. Sua presença silenciosa e observadora, muitas vezes ignorada pelos adultos, reforça a ideia de que forças sombrias estão à espreita, sempre prontas a proteger o mal que se disfarça de inocência.

A simbologia do número da besta

O momento em que os personagens descobrem uma marca na cabeça de Damien com os números 666 é o ponto de virada do filme. A marca da besta, mencionada no Apocalipse 13:18, é um dos símbolos mais temidos do imaginário cristão ocidental.

Mas o que é esse número, afinal?

Historicamente, o 666 foi interpretado como o número do imperador romano Nero César, cujas perseguições aos cristãos alimentaram o medo do “fim dos tempos”. Ao longo dos séculos, o número foi associado a diversas figuras políticas, instituições e eventos. Nos anos 70, era comum vê-lo ligado a teorias conspiratórias sobre governos, corporações e a chegada do “Novo Mundo”.

Em A Profecia, a marca em Damien não é apenas um detalhe de roteiro — é a materialização física da profecia, o elo entre o texto sagrado e a carne. O número, escondido sob os fios de cabelo da criança, simboliza a ideia de que o mal pode estar encoberto, mas ainda assim é real — basta saber onde procurar.

A força do medo apocalíptico: por que o filme ainda nos assombra?

A Profecia ativa em nós um medo arquetípico: o medo de que o mal venha não de fora, mas de dentro daquilo que mais amamos — a família, os filhos, o lar.

Mais do que o demônio com chifres, o verdadeiro terror é psicológico e social: é o colapso da ordem familiar, a impotência das instituições religiosas diante do mal e a falência do poder político quando confrontado com o sobrenatural.

Do ponto de vista sociológico, o filme reflete o medo das elites — Damien é filho de um diplomata americano, membro da alta sociedade. Ou seja, o anticristo nasce no coração do poder. Não é um outsider, mas alguém que habita os corredores da diplomacia, da política e da influência. Isso nos faz perguntar: e se o mal não for marginal, mas sistêmico?

Curiosidades:

* Gregory Peck quase recusou o papel por achar que não combinava com sua imagem clássica de herói. Ironicamente, sua interpretação sombria lhe deu um novo reconhecimento.

* Durante as filmagens, aconteceram acidentes e eventos estranhos, o que fez o filme ser considerado "amaldiçoado" — como outras produções da mesma época, como O Exorcista e Poltergeist.

* A música tema, "Ave Satani", composta por Jerry Goldsmith, venceu o Oscar e ajudou a elevar o clima solene e aterrador do filme. Trata-se de uma paródia sombria do “Ave Maria”, cantada em latim invertido.

Conclusão: O filho do fim dos tempos

A Profecia é uma obra de terror que vai além da narrativa satânica. Ela encarna o medo do colapso espiritual, familiar e político, ao nos apresentar um mundo onde o mal não precisa gritar — ele apenas sorri, observa e cresce.

Damien é o espelho escuro de nossa esperança na inocência: uma criança silenciosa que carrega o fim dos tempos entre os olhos. E o mais perturbador é que, ao final do filme, o mal vence. Ele sobrevive. Ele se adapta. E continua à espreita.

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